Será mesmo que o Anglicanismo foi fundado por um Rei?

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Inglaterra do século XVI. O Rei Henrique VIII enfrenta uma questão que lhe consome os pensamentos dia e noite: a sucessão ao trono. Henrique está casado com Catarina de Aragão há mais de vinte anos, porém, apesar de muitas tentativas, o casal não consegue gerar um herdeiro masculino para garantir a continuidade da dinastia Tudor.

A pressão sobre Henrique para gerar um herdeiro é imensa. Ele acredita que o destino de seu reino e sua linhagem estão em risco. Além disso, a influência do pensamento renascentista e humanista na corte, com sua ênfase na família e nos valores patriarcais, reforça a importância de um herdeiro legítimo.

Catarina, uma mulher piedosa e dedicada, passa por várias gestações difíceis e trágicas, resultando em abortos espontâneos e morte de bebês logo após o nascimento (apenas uma filha sobrevive, a futura rainha Maria I). A incapacidade de Catarina de dar ao rei um herdeiro varão aumenta a ansiedade de Henrique e lança dúvidas sobre a legitimidade de sua linhagem.

Nesse contexto, Henrique se apaixona por Ana Bolena, uma jovem e encantadora dama da corte. Consumido por essa paixão proibida, o rei encontra uma justificativa para buscar a anulação de seu casamento com Catarina. Baseando-se em um trecho de Levítico 20:21, ele alega que seu casamento é ilegítimo, já que Catarina havia sido casada com seu irmão mais velho, Arthur, Príncipe de Gales. 

Henrique busca o apoio do Papa Clemente VII para anular o casamento, mas tem o pedido negado. Um intenso conflito entre a Coroa Inglesa e a Igreja Católica se inicia. Revoltado, o rei decide procurar uma alternativa para obter o divórcio. 

Apoiado por membros da corte, incluindo o alto clero, Henrique toma uma decisão drástica: romper com a autoridade papal, “estabelecer uma nova igreja” e se tornar o líder supremo da mesma. Em 1534, o Parlamento inglês aprova o Ato de Supremacia, que declara o rei como o “único e supremo chefe da Igreja da Inglaterra”. 

O divórcio entre Henrique e Catarina de Aragão é formalizado. O casamento entre os dois é declarado nulo com base nos argumentos de invalidade apresentados pelo rei. Henrique casa com Ana Bolena, que não demora a engravidar. Em setembro do mesmo ano, ela dá à luz uma filha, que mais tarde se tornaria a Rainha Isabel I.

A partir desse rompimento com o governo papal, Henrique VIII promove uma série de mudanças na liturgia e na doutrina da Igreja da Inglaterra, mantendo elementos da tradição católica e introduzindo elementos distintamente reformados. A igreja nacional desenvolve uma identidade única, combinando características católicas e protestantes. 

Nasce a Religião Anglicana.

Esse é o resumo sobre a origem do anglicanismo que costumamos encontrar nos sites de busca e nos livros de história: um rei egoísta com interesses escusos fundando sua própria igreja. No entanto, essa narrativa simplista não capta toda a complexidade e a riqueza da história do anglicanismo.

Embora seja verdade que o desejo de Henrique VIII por um herdeiro e pela anulação de seu casamento tenha desempenhado um papel significativo na separação da Igreja da Inglaterra da Igreja de Roma, é limitado reduzir o anglicanismo a uma mera consequência desses eventos.

A Religião Anglicana possui raízes que remontam séculos antes do reinado de Henrique VIII. O termo anglicano tem origem em ecclesia anglicana, expressão medieval latina que data 1246. Ou seja, 288 anos antes da indisposição de Henrique com o papado, mesmo estando sob o poderio de Roma, a igreja nacional já era chamada de Igreja Inglesa.

Uma viagem a 595 nos mostra Agostinho de Cantuária, monge beneditino, prior de um mosteiro em Roma, sendo convocado pelo papa Gregório I para liderar uma missão à Britânia. O intuito é converter o Rei Etelberto e seus súditos no Reino de Câncio, fiéis ao paganismo anglo-saxônico.

Agostinho segue com a missão, o rei se converte e permite que os missionários não apenas preguem livremente, como oferece a eles terras para a fundação de um mosteiro fora das muralhas da cidade. Dois anos depois, Agostinho é consagrado bispo e promove o batismo da população inglesa. Entretanto, engana-se quem pensa que a história dos primeiros cristãos daquela região surge aí… 

Quando chega à Ilha Britânica, Agostinho de Cantuária já encontra uma igreja, formada séculos antes pelos povos celtas que se desenvolveram ao redor do Mar da Irlanda. Entre esses povos estavam irlandeses, escoceses, galeses, córnicos e os habitantes da Ilha de Man. 

Segundo Dom Robinson Cavalcanti, em seu livro “Anglicanismo: Identidade, Relevância, Desafios”, a Igreja Celta surge como resultado do esforço de leigos: soldados, funcionários civis e comerciantes cristãos romanos que levaram o Evangelho para aquela região. Ele cita também que no ano 70 d.C., dentre os escravos perseguidos nas Gálias (França) que fugiram para o litoral inglês, estavam grupos de cristãos. 

Uma antiga tradição atribui a presença de José de Arimatéia na região de Glastonbury, ainda no primeiro século. Há sítios arqueológicos desse período, como uma Capela em Kent, uma Igreja em Silchester e a presença, em vários lugares, de símbolos cristãos, como o XP. 

Em seu tratado De Praescriptione Haereticorum, Tertuliano menciona brevemente a presença de uma comunidade cristã na Britânia no ano 200. Sabe-se que três bispos ingleses estiveram presentes no Concílio de Arles, no sul da França, em 314. Não sabemos se estiveram no Concílio de Nicéia (325), mas Atanásio informa que a Igreja inglesa se submeteu às suas deliberações.

Essas histórias indicam que antes da expedição de Agostinho, o povo Celta já havia se convertido ao Cristianismo, tendo, inclusive, seu primeiro mártir na pessoa de Santo Albano, sacerdote morto durante a perseguição do imperador Diocleciano (305). 

Dom Robinson destaca que os cristãos célticos tinham um forte acento místico, ascético e missionário, sendo influenciados pela contemplação da Igreja Oriental, inclusive pela adoção da sua versão do Credo. “Essa contemplação litúrgica, esse sentir da fé, essa valorização da natureza, a diferenciava da visão jurídica, filosófica e institucional da Cristandade euro-ocidental sob a tutela de Roma”.

Aqui temos um ponto de discussão entre historiadores, teólogos e clérigos. Alguns afirmam que havia romanidade e reconhecimento do governo papal já nesse primeiro cristianismo das Ilhas Britânicas; outros, porém, alegam que a Igreja Celta era um ramo autônomo do Cristianismo, comportando-se como parte da Igreja Cristã, mas sem vínculos formais ou subordinação à Roma. 

A ligação com Roma surgiria a partir do século V, após o sul e centro da Inglaterra terem sido invadidos por anglos, saxões e jutos, que iniciaram um processo de descristianização da região. E foi justamente isso que levou o Papa Gregório Magno a enviar para aquelas regiões a força missionária sob a liderança de Agostinho. 

Os monges estabeleceram-se na cidade de Cantuária (Canterbury), perto do litoral. Além de reforçar o Cristianismo na Inglaterra, os missionários deveriam vincular a igreja local (céltica) à Roma, respeitando, tanto quanto possível, seus costumes. Uma combinação entre a tradição romana e a céltica formaria a identidade da ecclesia anglicana até a época da Reforma. 

É comum entre os anglicanos ligar a origem da Igreja Anglicana ao trabalho direto dos Pais da Igreja, bem como aos leigos evangelistas que desempenharam papel no estabelecimento da antiga Igreja Celta, incorporada à Igreja Católica Romana (e não estabelecida por ela) por meio das missões gregorianas, lideradas por Agostinho da Cantuária.

Isso joga luz em outro ponto de divergência entre católicos romanos e cristãos adeptos da Reforma, não só anglicanos, mas também luteranos e outros protestantes históricos:

Os católicos creem que tudo ligado à igreja pós-apostólica pertence à Igreja Católica Romana, enquanto os adeptos da Reforma argumentam que “Igreja Católica” não necessariamente significa “Igreja Romana”.

Essa interpretação vem do entendimento de que o termo grego katholikos foi inicialmente usado para descrever a Igreja como sendo universal, abrangendo todos os crentes e seguidores de Jesus Cristo, e não a uma instituição específica. Isso explica, inclusive, porque o termo “católico” ainda hoje é usado em igrejas protestantes históricas, principalmente nas que professam os Credos – e porque adeptos do anglicanismo costumam referir a si mesmos como “católicos reformados”.

Apesar das divergências mencionadas, é incontestável que a Igreja Anglicana, mesmo estando sob a jurisdição religiosa de Roma, tenha desenvolvido características estatais e nacionalistas. Além disso, sabe-se que ao longo de 850 anos, sua relação com o papado foi marcada por conflitos contínuos. A independência histórica era incessantemente reivindicada pela igreja inglesa. Essa perspectiva é corroborada por um documento inglês antigo de autoria desconhecida:

“…sempre houve uma certa insatisfação na Igreja Inglesa, por ter que se submeter a uma Igreja estrangeira (romana). Esta animosidade se intensifica a partir do décimo segundo século, e dá início a tensões que são inegáveis. No século XII, por exemplo, o rei Henrique II limitou o poder do clero inglês, quando lhe proibiu a possibilidade de apelar a Roma, quando limitou a autoridade da Igreja em imprimir censuras, e quando subordinou a permissão ao rei as viagens dos bispos para o exterior. Em 1164, ficou estabelecido, na Dieta de Cheredon, que a eleição dos prelados só se faria com a aprovação do rei, a quem os eleitos antes da sagração deveriam prestar juramento de vassalagem e fidelidade. O Ato de Provisão (1351) e o Estatuto Praemunire (1353) proíbem, respectivamente, a entrada em território britânico de qualquer bula ou sentença papais, e impedem a apelação aos tribunais eclesiásticos estrangeiros, declarando ilegítimas todas as nomeações feitas pelos papas”.

Com isso, entendemos que Henrique VIII de fato tirou a Igreja da Inglaterra da tutela de Roma motivado por seu interesse no divórcio e aproveitando o fervor da Reforma Protestante. Mas existiam outros motivadores para a cisão. Tendo rompido completamente com o Papado, a igreja foi levada a aderir elementos reformados enquanto mantinha costumes romanos e celtas que já estavam incorporados à sua identidade.

Portanto, é justo afirmar que a tradição anglicana é resultado de uma interação complexa de fatores históricos, teológicos e culturais que se estendem além do reinado de um único monarca. E é importante reconhecer que embora os eventos envolvendo Henrique VIII tenham sido significativos, eles foram apenas um ponto de inflexão na longa história do anglicanismo, e não a razão central da criação de uma nova religião, como se costuma afirmar. 

Além disso, não se pode perder de vista o fato de que reformadores como Tomás Cranmer desempenharam um papel crucial na definição dos princípios teológicos e litúrgicos que ainda hoje caracterizam o anglicanismo, assunto de um próximo artigo…

1 comentário
  1. Paulo Maccedo Diz

    Fontes citadas no texto:

    Sobre o termo católico: O primeiro documento histórico que contém o adjetivo “católico” referindo-se à Igreja é uma carta de Santo Inácio de Antioquia à Igreja de Esmirna, escrita após a sua prisão, que o levou ao martírio em Roma.

    Sobre o documento histórico: Historical Memorials of Canterbury (“Memoriais Históricos de Canterbury”), escrito por Thomas Stapleton no século XVI

    Sobre a lenda de José de Arimatéia: “Glastonbury: Myth & Archaeology”, de Philip Hahtz

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