Imagine que você encontre uma máquina do tempo que pode te levar a qualquer lugar em qualquer época da história. Depois de refletir por um tempo, você decide viajar até o Século IV, a certa localidade da África.
A viagem dura alguns minutos. Você aterrissa enjoado, mas logo melhora e se apressa para sua missão: encontrar um certo teólogo importante chamado Agostinho.
Depois de rodar a cidade por horas, ser interpelado por homens que estranham seu jeito e suas vestes, com dificuldades de se comunicar com aquele povo, e tendo de superar os mais diferentes desafios, você finalmente chega ao local onde o santo se encontra.
Alguns homens se apressam a anunciar a Agostinho, que logo surge com expressão de estranheza. Você fica feliz ao ver um dos mais importantes pensadores da história enquanto ele o observa.
Depois de várias explicações, o santo aceita a possibilidade de ser um milagre alguém do futuro estar ali, e começa a conversar amigavelmente com você usando um idioma que ambos compreendem.
Agostinho faz perguntas para saber como são as coisas em seu tempo.
Você alegremente começa a narrar o que consegue se lembrar. Fala da invenção do telefone, do automóvel, das cidades com prédios modernos, das músicas e roupas, do modo de viver das pessoas.
Depois, naturalmente, começa a descrever como são os cristãos de sua época. Fala de como é ter fé na pós-modernidade, detalha o que entende por servir a Cristo em um país que goza de relativa liberdade política e religiosa, enfim, compartilha o que lhe vem em mente.
— Então a religião cristã prevaleceu? — Pergunta Agostinho.
— Sim, mas nós cristãos combatemos ela. — Responde você confiante.
— Como assim os cristãos combatem a religião? — Pergunta o Santo.
— Sim, nós entendemos que devemos ser cristãos sem sermos religiosos… Religião é atraso, Evangelho é vida. O que importa é seguir a Cristo, não os dogmas e rituais.
Agostinho respira fundo e se cala por alguns segundos.
Depois, põe-se a questionar mais:
— Então vocês entenderam que Evangelho e Religião não se misturam? E que seguir a Cristo, não a rituais, é o que importa? Mas o que aconteceu nesse tempo?
Você tenta resumir as questões que levaram os cristãos do seu tempo a serem “não-religiosos”. Fala com propriedade da Reforma Protestante, das proliferações de vertentes cristãs, das expressões recentes de Cristianismo, de várias coisas que lhe vem à mente no momento.
O rosto do Santo Agostinho não é mais o mesmo… Ele está pensativo.
O silêncio impera na sala por alguns segundos.
Depois, você vê o teólogo caminhar em silêncio. Por impulso, acompanha-o. Ele adentra em certo cômodo e começa a mexer em espécies de manuscritos. Você observa ele escolher uma folha específica, ajeitá-la na mesa e passar o dedo até chegar onde está escrita uma definição de religião: “reeleger”. Trata-se de um trecho de seu importante livro, A Cidade de Deus.
— Religare, como entendeu Lactâncio… Religião é um laço de piedade que serve para religar os seres humanos a Deus. Vocês não acreditam nisso no tempo em que vivem? – Expressa Agostinho.
Você coça a cabeça e fica sem saber o que dizer.
Entrou em moda usar frases como: “Sou cristão, não sou religioso” e “Ser de Jesus é uma coisa, ser religioso é outra.” Uma rápida pesquisa no Google ou no Youtube é suficiente para encontrar uma tonelada de conteúdos que defendem essa ideia.
Mas por que tantos levantam essa bandeira hoje? Será que ter fé é suficiente, e que qualquer expressão religiosa deve ser descartada? Será que aquela história de que o conteúdo (espiritualidade) é mais importante que o rótulo (religião) é verdadeira?
Para explicar bem o fenômeno dos “fiéis sem religião”, talvez tivéssemos que arranjar uma máquina do tempo, como a citada no começo do texto, e passar por várias épocas até chegar naquelas em que esse tipo de ideia começou a ser divulgada.
Poderíamos, por exemplo, viajar da Antiguidade à Idade Média, do Iluminismo à Modernidade. Mas uma viagem como essa pode não ser necessária. Olhar para o nosso tempo, conhecido como Pós-Modernidade, talvez seja suficiente…
Por que as pessoas estão abandonando a ideia de religião?
Entendo que esse é um problema não apenas relacionado à ortodoxia ou à apologética. Trata-se de uma questão conceitual, filosófica e semântica.
A ideia apresentada em Cidade de Deus, que vem de um Pai da Igreja, Lactâncio, talvez não seja a ideia que venha à mente da maioria das pessoas que se dizem não-religiosas. Se fosse, talvez não fossem não-religiosas.
Talvez, se lessem e entendessem pensamentos como esses de C. S. Lewis…
“Essa é uma das razões pelas quais eu acredito no Cristianismo: é uma RELIGIÃO que ninguém teria conseguido inventar”.
“Eu acredito no Cristianismo [RELIGIÃO] como acredito que o sol nasce todo dia. Não apenas porque o vejo, mas porque através dele eu vejo tudo ao meu redor.”
… tivessem outra ideia sobre religião.
Por isso temos que partir do pressuposto:
“O que significa religião para essas pessoas?”
Um dicionário contemporâneo pode ajudar:
“Religião é um conjunto de princípios, crenças e práticas de doutrinas religiosas, baseadas em livros sagrados, que unem seus seguidores numa mesma comunidade moral, chamada Igreja.”
Outra definição:
“Reunião dos princípios, crenças e ou rituais particulares a um grupo social, determinado de acordo com certos parâmetros, concebidos a partir do pensamento de uma divindade e de sua relação com o indivíduo; fé, culto… [Figurado] Reunião de normas éticas ou morais.” (dicio.com.br)
“Rituais”, “normas”, “doutrinas” e termos semelhantes tendem a gerar ojeriza aos crentes adeptos da não-religião. Essas coisas podem ter se tornado sem sentido para eles. Podem trazer hoje um sentimento de inutilidade, de não-satisfação, ainda mais em um tempo de hiper estímulos como o que vivemos.
Também tem o fato de que a figura do religioso, não sem razão, tornou-se pejorativa. Ela passou a ser atribuída àquele que segue normas, doutrinas e rituais, muitas vezes de forma zelosa, mas que não experimenta uma verdadeira transformação de vida — algo semelhante ao que os fariseus faziam no tempo de Jesus.
Vamos passar, ponto a ponto, por essas e outras explicações…
O equívoco da não-religião
Com base nas definições acima, com exceção de quem desiste de se reunir com outros fiéis, até os menos ortodoxos continuam, em certa medida, religiosos.
Uma ou duas vezes por semana, eles vão até um local, seja templo, loja ou casa, entoam louvores, leem as escrituras, dizimam, participam da ceia, colam adesivos no carro, fazem tatuagem com temática religiosa, entre outras coisas.
Até os líderes de determinados segmentos que dizem combater a religiosidade, no fim, permanecem religiosos. Podem negar enfaticamente, mas na prática, criam novas versões de templos, liturgias, sermões, louvores e movimentos, que tem, mesmo que distante, traços religiosos.
Também entram os dogmas, que o dicionário define literalmente como “o que se pensa ser verdade”. Então a coisa fica ainda mais “religiosa”. Lembramos do que dizia Chesterton:
“O homem pode ser definido como um animal que constrói dogmas. À medida que ele empilha doutrina sobre doutrina e conclusão sobre conclusão na formação de um sistema tremendo de filosofia ou de religião, ele torna-se, no único sentido possível da expressão, mais e mais humano. Quando ele destrói doutrina após doutrina num elaborado ceticismo, quando ele se nega a aderir a um sistema, quando ele diz que tem definições incomparáveis, quando, na sua própria imaginação, se senta como Deus, não partilhando nenhuma forma de credo mas contemplando-os a todos, então por esse processo ele afunda-se lentamente decaindo para a indefinição dos animais vagabundos e para a inconsciência da relva. As árvores não têm dogmas. Os nabos são realmente tolerantes.”
Então, o que ocorre? Simples…
Como toda a força do pensamento trabalhado no Iluminismo e na Modernidade, por exemplo, o estudo da Tradição veio sendo abandonado, desprezado e humilhado. E não estou falando apenas de liturgia, mas também da própria doutrina e discipulado.
A espiritualidade veio sendo trocada por elementos temporais, e o esquecimento dos ensinamentos mais básicos dos mandamentos deixados por Cristo e os Apóstolos resulta na mudança do comportamento que vemos.
Isso nos leva a ver que, na verdade, esses movimentos anti-religião estão apenas substituindo a religião tradicional por outra coisa mais pop, mais moderna, mais de acordo com o gosto do freguês — e que, por ser oposta à Tradição, torna-se vazia, sem sentido.
Seguindo adiante, chegamos a mais um fraco e equívoco argumento:
A ideia de que Cristo não fundou religião…
Porque desafiou o status quo da mesma.
Mario Grech, bispo de Gozo (Malta), lembra que os ensinamentos de Jesus trouxeram desordem à religião hebraica. Cristo criticou flagrantemente práticas religiosas sem sentido, combateu os fariseus chamando-os de hipócritas, afirmou que o homem vem antes da lei, deu um novo centro, o amor, a uma religião que estava focada em sacrifícios (Mc 12, 33), falou sobre a necessidade de derrubar o templo de Jerusalém para ele construí-lo novamente (Jn 2, 19).
Mas isso seria condenar ou ressignificar a religião?
Pois o mesmo Jesus cresceu e viveu como um judeu (Lc 2,27-30 e 2,39-52), frequentava o templo (Mt 24,1, Lc 19:47); citou as Escrituras Sagradas (Lc 4, 1617); instituiu o que conhecemos como Eucaristia ou Santa Comunhão (Lucas 22:19-20); estabeleceu padrões de vida e apresentou conceitos morais (Mt 5). Nesse aspecto, Cristo jogou luz sobre um tipo de religião.
Por isso que, se eliminarmos os templos e todos os processos litúrgicos mais tradicionais, ficarmos apenas com as reuniões dos fiéis e os sacramentos mais básicos como Santa Comunhão e Batismo, e se usarmos como regra moral apenas os dois maiores mandamentos, amar a Deus e ao próximo, ainda assim seremos religiosos.
A ignorância da necessidade de organização religiosa
Não podemos deixar de citar também que, em 2.000 anos de história, foi necessário que os cristãos se organizassem de maneira institucional. É óbvio que sem a mínima organização, estrutura, hierarquia, doutrina, o Cristianismo se tornaria inviável socialmente falando. Não à toa, Cristo elegeu 12 apóstolos (Mateus 10, 2-4; Lucas 6,13-16), escolheu 70 discípulos (Lc 10) e deu a eles parâmetros de como agir e se portar em diferentes situações.
O livro de Atos também nos aponta algo valioso: No começo da Igreja, uma série de medidas precisavam ser tomadas para que o trabalho iniciado por Jesus tivesse continuidade. Logo no primeiro capítulo, encontramos o relato da escolha de um apóstolo substituto de Judas, que veio ser Matias (vers. 12-26). Mais adiante, temos a escolha de 7 diáconos (6, 1-7), entre outras ações.
Você pode simplesmente argumentar que essas coisas não passam de modelos de organização, algo semelhante ao que as empresas aplicam em suas administrações. Mas essas coisas também apontam para aquilo que aprendemos a chamar de… religião.
Portanto, em vez de tratarmos a religião como algo ruim, não seria melhor darmos nomes certos aos bois? Por que não chamar de “falsa religião” as expressões enganosas de fé? Por que não atribuir “religião vazia” ou “mera religião” ao tipo de cristianismo sem espiritualidade? Por que não recorrer ao “farisaísmo”, “falso moralismo”, “puritanismo sem sentido”, “ortodoxia de boteco” ou coisas semelhantes quando tivermos que falar da moralidade distorcida de alguns tipos de religião?
O desprezo pela liturgia
Liturgia é compilação de ritos e cerimônias relativas aos ofícios divinos da Igreja presente em diferentes vertentes cristãs. Mas de onde ela vem? Qual sua origem?
Se você mergulhar na história do Cristianismo antigo, como eu tenho procurado fazer, descobrirá que os primeiros Bispos e Pais da Igreja consideraram o livro do Apocalipse a chave para a liturgia.
Muitos estudiosos hoje, entre católicos e protestantes, confirmam esse fato, de que existe, no Apocalipse, um rito, uma liturgia acontecendo. As descrições de João batem perfeitamente com o Templo construído por Salomão (que por volta daquele tempo já havia sido destruído).
João vê candelabros, altar, sacerdotes paramentados, o cordeiro, incenso, anjos, santos, a virgem Maria como a Nova Arca da Aliança e a mulher vestida de Sol; há frases e respostas, momentos de exultação e momentos de um profundo silêncio.
Scott Hahn escreveu fazendo relação entre a liturgia hebraica da Antiga Aliança com o Livro de Apocalipse. Depois explicou:
“O livro do Apocalipse apontava ainda para algo diferente, algo maior. Enquanto Israel orava imitando os anjos, a Igreja do Apocalipse adorava junto com os anjos (19,10). Enquanto somente os sacerdotes eram permitidos no lugar sagrado do Templo de Jerusalém, o Apocalipse mostra uma nação sacerdotal (5,10; 20,6) vivendo sempre na presença de Deus. Daí em diante não haveria já um arquétipo celeste e uma imitação terrena. O Apocalipse agora revelava um único culto compartilhado por homens e anjos!”
Ou seja, a liturgia praticada em principais segmentos cristãos é embasada biblicamente.
Sendo assim, um cristão não-religioso pode estar abrindo mão de algo de suma importância para a vida espiritual e possivelmente desprezando o trecho da oração do Pai Nosso sugere: “Assim na terra como no céu”.
A dificuldade de conceber ordem e desordem
Não é difícil conceber que, desde a queda, vivemos um problema de ordem. E a grande verdade é que as ideologias influenciam e contribuem para tal desordem, principalmente por terem como fundamento a rebelião contra aquilo que a sã religião defende. O trecho da Contra os Acadêmicos nos ajuda a compreender isso:
“Uma recaída vacilante na existência primitiva é o fruto espiritual de ideologias modernas, a despeito de falarem em ciência e progresso. “Ideologia”, escreve Voegelin, “é a existência em rebelião contra Deus e o homem… a violação do Primeiro e do Décimo Mandamento, se quisermos usar a linguagem da ordem israelita… o nosos, a doença do espírito, se quisermos usar a linguagem de Ésquilo e de Platão (OH, v.I, p.xiv). No nível ontológico, isso é precisamente desordem.
Ordem e desordem são condições preeminentemente da alma. É a ordem ou desordem da alma que engendra e reflete, na dialética da existência, a ordem e a desordem da sociedade. ” É a ordem ou desordem da alma que reflete a harmonia do homem com a verdade do ser no ritmo do processo histórico ou sua defecção. Foi Platão, no ato de resistir à desordem social de seu tempo, quem descobriu que a “substância da sociedade é a psique” e que “a sociedade pode destruir a alma de um homem porque a desordem da sociedade é uma doença na psique de seus membros” (OH, v.III, p.69).
A “doença” ou nosos da alma é designada por Platão como a “ignorância da alma” da verdade do ser. O remédio prescrito é “retificar a relação entre o homem e Deus” através da conversão, ou, na linguagem de Platão, através da periagoge — “um giro de toda a alma, da ignorância à verdade de Deus, da opinião [doxa] acerca das coisas oscilantes para o conhecimento [episteme] do ser” (OH, v.III, p.68).
A religião é a cura para a desordem. Mas por estarem tão contaminados por uma nuvem de ideologias, os cristãos “não-religiosos” parecem não conceber.
Por fim…
Religião como experiência pessoal sem a prática social: uma crítica válida
Para fechar, destaco uma das críticas válidas como a que, em grande parte, a religião tornou-se meramente ritualística e pouco prática. Esse é um problema antigo, e como já citado, combatido até mesmo por Jesus.
Dietrich Bonhoeffer entendeu que “a religião era a adoração que teve pouco contato ou preocupação com as correntes mais profundas da vida. Foi a religião fomentada pelo Iluminismo, que envolvia a adoração de um Deus remoto da vida humana e pouco preocupado com os ensinamentos sociais bíblicos.
Para alguns, tal religião pode proporcionar um confortável sentimento de piedade interna, de calma e de repouso. Contudo, não promove a preocupação com as necessidades dos famintos ou dos pobres. Bonhoeffer estava convencido de que um cristianismo renovado descartará tal religião para ser fiel aos ideais estabelecidos por Cristo” (Hermes Donald Kreilkamp).
O pastor Carlos Bezerra certa vez escreveu: “Uma espiritualidade fundamentada em crenças, mas sem generosidade; em rituais litúrgicos, mas sem amor pelo próximo; em moralismo, mas sem preocupação com justiça social; será qualquer coisa, menos a espiritualidade proposta por Jesus de Nazaré.”
Quanto a isso, temos como orientação textos como o de Tiago 1.27: “A religião que Deus, o nosso Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo.” Aliás, o texto indica que existe uma religião, e é aceita como pura e imaculada. Um religioso que a segue estaria então fazendo o bem, concorda?
Entendemos então que há um problema, de fato, em ser um religioso zeloso, amar a adoração, os ritos e dogmas, mas rejeitar a oração, o jejum e o amor ao próximo, por exemplo. A religião precisa ir além da adoração e ser expressada na prática. E compreendo que ser piedoso e socialmente ativo não necessariamente precisa nos afastar dos ritos e tradições, muito menos nos tirar do padrão bíblico de adoração e liturgia.
A vivência cristã é integral. Ela preenche diferentes aspectos da nossa vida e nos prepara para o que viveremos na eternidade. Que possamos encontrar sentido no religare e resgatar a ideia do laço de piedade que serve para religar os seres humanos a Deus. Pois quem está unido ao Senhor forma com ele um só espírito (1 Co 2, 9-10).
E que possamos ter a consciência de que não são as ideologias ou os pensamentos modernos que nos unirão a Deus. Eles seguem a maré. E como bem destacou Chesterton: “Só uma coisa morta segue a correnteza. Tem que se estar vivo para contrariá-la.” Um complemento do próprio autor explica minha preferência em me afirmar religioso em um contexto onde isso virou antiquado:
“Cada época é salva por um pequeno punhado de homens que têm a coragem de não serem atuais.”