Não temos aqui cidade permanente

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“Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra.” (Carta aos Hebreus, 11.13)

Na cidade onde moro atualmente, vez ou outra me deparo com pessoas caminhando na beira da estrada. Elas usam roupas e acessórios semelhantes — chapéus, mochilas, tênis de caminhada, cantis e bastões de trilha. São pessoas em romaria, ou seja, em viagem a um lugar considerado santo e de devoção — nesse caso, especificamente, o Santuário Nacional de Aparecida do Norte. 

Romaria vem do termo “romeiro”, cujo significado é “uma pessoa que viaja para Roma”. Um sinônimo direto para romeiro é “peregrino”, um termo conhecido por cristãos de todas as tradições. Entendemos biblicamente que somos peregrinos; que estamos no mundo, mas não somos do mundo. Um versículo que deixa isso claro está na Epístola aos Hebreus: “Na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que há de vir” (Hb 13.14).

É com base nesse pensamento que um dos títulos mais populares da literatura cristã foi composto. Ele se chama “O Peregrino” e foi escrito pelo pastor John Bunyan na época em que esteve preso. O livro que foi publicado na Inglaterra em 1678 é uma alegoria da vida cristã. 

O autor relata, no prefácio e no posfácio, que o escreveu como forma de alerta aos perigos e instabilidades enfrentados na vida religiosa por aqueles que seguem os ensinamentos cristãos e buscam um caminho de perfeição para alcançar a coroa da Vida Eterna, citada no livro do Apocalipse. O Peregrino leva o leitor a refletir sobre como deve ser vigilante na vida terrena. Desde sua publicação, a obra jamais deixou de ser impressa. 

Depois da Bíblia, este é o livro mais conhecido no meio cristão não somente de fala inglesa, mas de diversas línguas, inclusive na China, onde chegou-se a produzir clandestinamente 200 mil cópias que foram distribuídas em três dias — ou seja, estamos falando de uma obra de grande relevância na história do cristianismo.

John Bunyan apresenta o jovem peregrino chamado Cristão, que é atormentado pelo desejo de se ver livre do fardo pesado que carrega nas costas. Cristão segue sua jornada por um caminho estreito — indicado por um homem chamado Evangelista — pelo qual se pode alcançar a Cidade Celestial. Na história, todas as personagens e lugares que o peregrino depara levam nomes de estereótipos como: Hipocrisia, Boa-Vontade, Sr. Intérprete, gigante Desespero, A Cidade da Destruição, O Castelo das Dúvidas, etc.

Durante a jornada, surgem várias adversidades, nas quais geram sofrimentos no protagonista, que chega a se perder, ser torturado e quase se afogar. Apesar de tudo, o protagonista permanece sóbrio, encontrando auxílio no companheiro de viagem chamado Fiel, um concidadão seu. 

Mais adiante, Fiel é executado pelos infiéis da Feira das Vaidades, que se opõem à busca dos dois peregrinos. Contudo, Cristão acha um outro companheiro, chamado Esperança, que mais tarde lhe salvará a vida, e eles seguem a dura jornada até chegarem ao destino almejado.

O Peregrino é uma obra alegórica contada como se fosse um sonho, voltando-se sempre a extrair dos eventos narrados os ensinamentos de fé, nos moldes das parábolas bíblicas. É com essa parábola bunyana  que seguimos com reflexões sobre o fim dos tempos. 

Como destaquei acima, nós, que cremos em Cristo, entendemos que estamos aqui somente de passagem. O peregrino não tem morada permanente, ele está numa caminhada. Sabe que não vai ficar aqui para sempre. Portanto, pensar na Nova Jerusalém, enfatizada no Apocalipse, é um ideal. Somos romeiros, portanto, temos um destino sagrado. 

Entretanto, isso pode ter efeito colateral. Uma visão mais fundamentalista do fim dos tempos pode nos jogar no pessimismo e na conformidade. Não é raro encontrar cristãos que pensam tanto no porvir que se esquecem que a missão celestial é para o agora.

Isso cria uma armadilha que pode nos tornar “fiéis sedentários”, religiosos que depositam todas as esperanças no amanhã, no arrebatamento, na volta de Cristo, enquanto já poderiam agir como cidadãos do céu. Precisamos entender que a jornada (agora) dos peregrinos está ligada ao destino (final). 

Paulo escreveu aos Colossenses: “Mantenham o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas”. Com isso o apóstolo nos encoraja a buscar as coisas de cima, a elevar o nosso pensamento e acreditar naquilo que Cristo já conquistou por nós. Só procura alguma coisa que tem interesse por elas. E cabe a cada um de nós crer e ir em busca daquilo que já está disponível para as nossas vidas hoje. 

N. T. Wright defende que o Novo Testamento não é sobre esperar o fim dos tempos, é sobre Deus vir para reinar como rei na terra por meio da morte e ressurreição de Jesus. Isso nos aponta para uma “teologia de intercâmbio”, ou seja, céu e terra interagindo. Jesus viveu isso enquanto estava encarnado. Ele estabeleceu seu Reino no âmbito terreno. Por isso é coerente não pensar no céu “como um lugar que eu vou, mas num lugar que veio”.

A esperança dos estrangeiros e peregrinos sobre a terra nos ajuda com isso. C. S. Lewis escreveu que “a esperança é uma das virtudes teológicas (…).

“Se você estudar a história, verá que os cristãos que mais trabalharam por este mundo eram os que mais pensavam no outro mundo. Os Apóstolos, que desencadearam a conversão do Império Romano, os grandes homens que erigiram a Idade Média, os protestantes ingleses que aboliram o tráfico de escravos — todos deixaram sua marca sobre a Terra precisamente porque suas mentes estavam ocupadas com o Paraíso. Foi quando os cristãos deixaram de pensar no outro mundo que se tornaram tão incompetentes neste aqui.” 


Nota: Ao escrever este pequeno ensaio, estava ciente de que falar sobre a presença física do Reino do Senhor na terra tende a causar dúvida. Sei que até entre aqueles que compreendem mais profundamente a Palavra de Deus há divergências sobre o assunto — ainda mais quando isso está associado diretamente à escatologia bíblica. 

Um texto bíblico que nos ajuda a compreender isso está em Lucas 17. “Certa vez, interrogado pelos fariseus sobre quando se daria a vinda do Reino de Deus, Jesus lhes explicou: “Não vem o Reino de Deus com visível aparência. Nem haverá anúncios: ‘Ei-lo aqui!’ Ou: ‘Lá está!’. Pois o Reino de Deus já está entre vós!” (Bíblia King James)

Uma tradução considerada fidedigna traz: “Porque o Reino de Deus está no meio de vocês.” (Bíblia Católica). Esta é considerada mais fiel ao conteúdo ensinado em toda a Escritura, além de fazer melhor sentido na passagem de Lucas 17.  

A razão para que os fariseus não procurassem pela vinda do Reino é justamente porque o Reino já estava, de certa forma, presente no meio deles. Note que uma característica essencial para a existência do Reino já estava presente: o Rei. 

Os judeus esperavam (e ainda esperam) um reino triunfalista, enquanto o reino humilde já estava (e está) presente. Isso muda a visão sobre o estabelecimento do Reino, o que inclui, o triunfo apocalíptico. Enquanto muitos esperam o reino futuro, “ele já está no meio de nós”.

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