Cristianismo céltico e a origem do anglicanismo

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Quando escrevi o artigo Por que me tornei anglicano, citei que, num primeiro momento, estranhei a informação histórica de que o Anglicanismo foi fundado por um Rei, o Henrique VIII. 

Em 1534, Henrique VIII optou pela separação da Igreja da Inglaterra de Roma após a negativa do papa a uma solicitação. Com problemas no casamento, ele havia pedido a anulação do matrimônio com Catarina Aragão, mas teve o pedido negado. 

Revoltado, o rei obrigou o Parlamento Britânico a instalar diversas leis que fizessem com que a Igreja ficasse não mais sob o poder de Roma, mas do Estado Inglês. Com isso, ele manteria a igreja sob a tutela do governo e poderia dar continuidade aos planos de se separar da esposa.

A narrativa em relação à postura do Rei não está errada. Equivocada é a afirmação de que o Anglicanismo foi criado a partir disso. Quem afirma tal coisa desconhece (ou desconsidera) a história anterior.

No meu artigo, cito dois fatos importantes. O primeiro é que o termo anglicano tem origem em ecclesia anglicana, expressão medieval latina (início-meados 1200), que significa “Igreja Inglesa”. Ou seja, 288 anos antes da indisposição de Henrique VIII com o papado, mesmo estando sob o poder de Roma, a Igreja Inglesa já era chamada como tal.

O segundo fato nos leva a 595, quando Agostinho de Cantuária, monge beneditino, prior de um mosteiro em Roma, foi convocado pelo papa Gregório I para liderar uma missão à Britânia. O intuito era converter o Rei Etelberto e seus súditos no Reino de Câncio, fiéis ao paganismo anglo-saxônico.

Agostinho seguiu com a missão, o rei se converteu e permitiu que os missionários não apenas pregassem livremente, como ofereceu a eles terras para a fundação de um mosteiro fora das muralhas da cidade. Dois anos depois, Agostinho foi consagrado bispo e promoveu o batismo da população inglesa. 

Repare que isso ocorreu quase mil anos antes de Henrique VIII, o que prova que a história do Anglicanismo é anterior ao que se costuma alegar. Mas o assunto não termina aqui. Existem ainda duas circunstâncias que nos ajudam a entender a história completa da “Religião da Coroa”…

Quando Agostinho de Cantuária chegou à Ilha Britânica, a Igreja Celta já estava situada na região. A Igreja Celta se refere ao Cristianismo praticado na Idade Média pelos povos celtas que se desenvolveram ao redor do Mar da Irlanda nos séculos V e VI. Entre esses povos estavam irlandeses, escoceses, galeses, córnicos e os habitantes da Ilha de Man. 

Isso significa que mesmo antes da chegada dos missionários romanos, uma parte da Bretanha já continha uma considerável comunidade cristã. Importante destacar que essas comunidades se formaram a partir do trabalho dos Pais da Igreja, os grandes responsáveis por disseminar a mensagem do evangelho aos mais diferentes e longínquos lugares do mundo. 

Então, o trabalho de Agostinho de Cantuária e dos missionários que o acompanharam em 595 foi unir e organizar os povos cristãos da região. Como se tratavam de povos não romanizados, a ação de catequese teve de ser desenvolvida de maneira gradual, e muitas práticas religiosas locais foram preservadas. 

O resultado foi uma combinação das referências religiosas entre a tradição romana e a céltica que formaram a identidade da a ecclesia anglicana. Diante disso, o justo é afirmar que a Igreja Anglicana teve origem com os Pais da Igreja e os antigos cristãos celtas, e que no século VI foi incorporada à Igreja Católica Romana pelas missões gregorianas, lideradas por Agostinho da Cantuária.

Por fim, vale destacar que, mesmo estando sob a jurisdição religiosa de Roma por 850 anos, a Igreja Anglicana naturalmente desenvolveu características estatais e nacionalistas. Durante todo esse tempo, a Inglaterra não parou de reclamar sua independência histórica, e sua relação com o papado sempre foi conflituosa. 

Portanto, Henrique VIII apenas separou a igreja autônoma que lá existia da tutela de Roma, motivado por seu interesse no divórcio e aproveitando o fervor da Reforma Protestante. Isso levou a Igreja Inglesa a romper com o Papado, aderir elementos da Reforma e ao mesmo manter muitos costumes romanos e célticos que estavam incorporados a ela.

Tudo isso nos leva a compreender porque a essência anglicana, além de cristã e apostólica, é patrística, celta e católica. Talvez isso explique porque valorizamos tanto o diálogo. Entendemos que o Anglicanismo é um tapete tecido com muitas linhas, e que a imagem final é a soma de inúmeras tradições espirituais e religiosas que se fundiram no decorrer da história.

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